Jean Wesly Moriseme, presente!


Por Fabíola Papini*

A morte do haitiano Jean Wesly Moriseme, em Flores da Cunha, no dia 07 de outubro, acendeu uma luz de alerta: como uma história que se repete, de violência e violação do direito à vida. A sucessão de fatos narrados envolvendo o último dia de vida deste jovem de 28 anos, que trabalhava e enviava parte do seu salário para sua esposa, filhos e seus pais, que estavam adoecidos, é o retrato do despreparo das equipes de saúde e segurança no manejo com uma situação complexa, que deveria ser contida com cuidado e não com bala.

Um imigrante haitiano, possivelmente experienciando uma desorganização/ crise psíquica grave, envolve-se em sucessivas situações de agressão e confusão, segundo relata a imprensa local. Ora, que se convoquem as forças policiais à resolução deste caso! - Aclamam as vozes que há séculos ecoam e demandam a retirada de circulação destes loucos, desordeiros e baderneiros! E o que faz a Brigada Militar, no século XXI, numa próspera e rica cidade da serra gaúcha? Dispara um tiro com a intenção de imobilizar aquele que agia fora da norma de conduta esperada, num “dia de fúria”. Vale destacar que ele foi medicado num hospital da cidade e em seguida liberado, causando novo tumulto e então, atingido pelo disparo da PM que o vitimou fatalmente.

De inédito, a lamentável perda deste jovem e a dor da sua família e amigos. A violência protagonizada pelo Estado não é inédita: não apenas o gatilho disparado da mão de um agente da polícia; mas a boçalidade de uma rede de saúde incapaz de acolher e intervir adequadamente numa situação de crise, que neste caso seria vital a Moriseme. A história, essa sábia que nos convida a conhecê-la para sermos menos hipócritas, prepotentes e indiferentes, nos mostra o quanto a violência é presente nas intervenções e abordagens com indivíduos que demandam atenção em saúde mental.

Por muito tempo estes sujeitos foram vistos como casos de intervenção do Estado através de medidas excludentes e de isolamento. O espaço concebido para tal finalidade foi o manicômio ou hospício e os agentes de “captura” destes desviantes foram as forças policiais, em muitos casos. Ideias de higienização social, advindas em boa medida da teoria da degenerescência, marcaram o período de urbanização do país - final do século XIX e início do século XX. A instituição hospitalar passou a representar um dos instrumentos estratégicos do modelo de sociedade em construção, que buscava excluir os degenerados para salvação da humanidade.

O destino de muitos imigrantes italianos da serra gaúcha, nas primeiras décadas de colonização, foi o Hospício São Pedro (HSP), como confirmam as guias de internação enviadas pela Intendência de Caxias, disponíveis no Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami. A experiência dos italianos na chegada à cidade (que na época incluía os limites territoriais de Flores da Cunha) e as dificuldades experienciadas a partir do rompimento com sua pátria, com os vínculos lá estabelecidos, com seus referenciais identitários, foram fatores sociais que colaboraram para que vivências de desajuste, alcoolismo, desequilíbrio e violência fossem concebíveis – tornando-os desviantes nos contornos progressistas da “Ordem e Progresso”.

Wadi (2002) ao analisar os relatórios dos diretores do Hospício São Pedro identificou o incômodo que a falta de informações acerca dos indivíduos encaminhados acarretava aos médicos, principalmente no que dizia respeito à cura dos doentes. Dr. Tristão Oliveira Gomes, em seu relatório de 1902 “compreende” as limitações e dificuldades que as autoridades policiais enfrentavam para coletar informações mais amplas e exatas das famílias dos alienados, “pois reconhecia que estas encontravam-se muitas vezes ‘obcecadas pelo preconceito’, recusando-se a fornecer elementos ou dados anamnésicos, cujo valor desconhecem” (Wadi, 2002, p. 163).

Curiosamente, 113 anos após Dr. Tristão descrever suas preocupações com as escusas informações derivadas das autoridades policiais, que conduziam os “alienados” ao Hospício, nos deparamos com a notícia da morte, ou melhor, execução de Jean Wesly. Assim como muitos imigrantes italianos que aqui chegaram, o jovem vinha em busca de uma vida melhor. Qualquer imigrante, ao se aventurar por um novo universo cultural, linguístico e social poderá encontrar a prosperidade. Mas nem todos. “Se jogar” neste mundo misterioso, do incerto e desconhecido, é uma caixinha de surpresa, no qual os corajosos e os sem opção costumam pagar pra ver. Foi o que fizeram tantos imigrantes dos quais descendemos e é também o que milhares de pessoas fazem neste exato momento. Buscam uma vida melhor. Nesta busca, deparam-se com leis, com códigos culturais e uma língua desconhecida, que podem colocar em xeque sistematicamente o “conforto psíquico”, exigindo adaptações e acomodações constantes. Novas subjetivações se originam deste encontro, com os recursos desenvolvidos na história singular de cada um. Triste é encontrar a autoridade policial do século XIX em ação.

Nesta relação concreta entre um imigrante haitiano, provavelmente num quadro clínico grave que demandava contenção farmacológica, por que não ocorreu o encontro com uma equipe de saúde? Há um arsenal de drogas desenvolvidas pela indústria farmacêutica capazes de atuar em tais situações, porque elas não foram usadas? Porque se optou pela contenção via bala de uma arma de fogo, feita para matar? Nesta disputa das potentes indústrias farmacêutica e bélica, fico com a primeira.

Onde está a responsabilidade dos gestores municipais em propor um olhar específico, contemplado em políticas públicas, de atuação com estas populações de imigrantes? Se fosse um imigrante europeu, hoje, será que esse desencontro e seu desfecho seriam os mesmo? E a reforma psiquiátrica, é mais uma lei distante da vida das pessoas? Porque ainda esse ranço e esse desejo de aniquilar o outro?

A crítica à violação dos direitos humanos e a terapêutica subjugada em instituições totais como os hospícios, caracterizados como depósitos para guardar loucos, conduziu o movimento que culminou na Lei da Reforma Psiquiátrica, nº 10.216, de 6 de abril de 2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental.

Quatorze anos após a promulgação da lei, muitos são os desafios para que nos distanciemos deste passado presente. Um novo lugar no imaginário social precisa ser forjado para que possamos nos relacionar com a loucura e o louco, de maneira generosa e não violenta. Se as equipes de saúde e os agentes do Estado forem incapazes desta generosidade do cuidado, e não reivindicarem este lugar, então estamos diante de algo realmente sério e perverso.

A história de Jean Wesly passa a integrar um recorte maior sobre a experiência de exclusão que o mundo contemporâneo ainda tece, mantendo os mesmos silêncios. Reconstruir esta experiência, resgatar as memórias de outros tempos, das vozes silenciadas, e estranhar a barbárie, é trazer pra consciência aquilo que ficaria mais bem colocado embaixo do tapete da história - só que não.

Por uma sociedade que cuide de pessoas mais do que de coisas. E só.



Referências:
Cunha, M. C. P. (1990). Cidadelas da ordem. São Paulo: Brasiliense.
Haiti busca informações (14/10/2015). Jornal Pioneiro, p. 8. Caxias do Sul.
Papini, F.Z. (2012). Loucos em Caxias: 1909 a 1923. Trabalho de Conclusão de Curso não-publicado. Centro de Ciências Humanas, Psicologia. Universidade de Caxias do Sul. Caxias do Sul, Brasil.
Wadi, Y. M. (2002). Palácio para guardar doidos. Porto Alegre: Editora da Universidade/ UFRGS.

*Fabiola Papini é Psicóloga

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